Musics...

6 de julho de 2010

O Grito...


O GRITO



Ela era uma mulher silenciosa.Obediente também.Jamais dizia não.Como era difícil dizer não para ela ou talvez tivesse sido acostumada a dizer apenas sim sempre. Nunca havia questionado a mãe, mesmo quando percebia que ela estava errada, mesmo quando ela a preteria em favor de sua irmã mais velha. Nunca conseguiu entender a preferência da mãe muito bem.Ela era tão bonita e tão inteligente quanto a irmã.Por que ela nunca havia notado isso?
Acostumou-se a ficar na sombra, quieta, bem quieta. Na escola, sentava na última carteira, escondida. Em casa, ficava sempre calada em seu quarto, em seu mundo. O que é mais espantoso é que ninguém achava sua presença importante. Talvez não fosse importante mesmo!
Seus companheiros sempre foram os livros.Amava-os.Mesmo mudos podiam falar.Eram quase parecidos.Não tinha muitos, mas os que tinha, eram suficientes para fazê-la sonhar.
Às vezes, ela era uma fada, outras uma modelo famosa, mas sua melhor fantasia era de ser sereia. Fechava os olhos e podia ver milhares de pessoas embevecidas com o seu canto, prestando atenção nela, apenas nela.Quando lia um livro novo, era quase uma felicidade clandestina.Aliás era uma felicidade clandestina!Era dela, apenas dela aquele prazer. Tão poucos tivera de verdade.Mesmo agora, casada, seu único prazer era ler.
Era uma boa esposa: prestativa, calma e quieta. Ela sabia que não era feliz e sabia que ele não era feliz com ela.Nunca entendeu o porquê dele ter casado com ela.Sempre foi tão sem graça, atrativos e tudo mais que é necessário para sair da sombra. No início, pensou que ele a faria feliz, que seria diferente e melhor. Aos poucos, percebeu que não havia como alterar o destino.
Moravam com a mãe e a irmã dele e elas duas detinham o poder na casa.Era uma disputa desonesta. Foi fácil continuar calada e na sombra dele. Não teve filhos, ele não queria. Não estudou mais, ele também não queria.Também não podia trabalhar.A única coisa que lhe devolvia a vida era a sua estante com alguns livros.
Um dia de sol quando andava pelo quintal, notou que a sua sombra não a acompanhava. Na verdade, ela não saia do lugar, parecia que se recusava a segui-la. Pensou que estava vendo coisas, mas não ligou. No dia seguinte quando foi lavar a louça, a mesma coisa aconteceu.Ela foi para a cozinha enquanto a sombra pegou um livro e foi ler.A sombra nunca a seguia, fazia o que queria, o que ela queria e, no entanto, não tinha coragem para fazer. A sombra parecia se insurgir contra ela ou coisa assim.
Um dia, na casa da mãe, a sombra a abandonou e foi ao quarto de Dona Leda.Ela a seguiu. A sombra abriu uma gaveta e lhe mostrou uma caixa amarrada com um pedaço de fita amarelado. Quando ela abriu a caixa, ela finalmente entendeu o desprezo da mãe.Cartas antigas denunciavam o adultério.Ela era o fruto de um erro, um grande erro e pagou caro pelo caso de amor. Pode entender o quanto a mãe havia sofrido com o abandono do amante e com a mentira que carregou pelo resto da vida. Agora, entendia por que o pai mal olhava para ela. Ele deveria saber.Fechou a caixa, guardou a dor e gritou.Gritou forte, gritou pela primeira vez. Quebrou o silêncio, espalhou as verdades pela casa toda.Saiu correndo pelo corredor enquanto sua sombra vinha atrás alucinada. Passou pela mãe silenciosa como sempre, sumiu pela rua.
Foi para à praia, andou pela areia enquanto a sombra brincava no mar, livre. Mas não é que a sombra encontrou uma sereia e foi atrás dela. Ela até tentou gritar, porém sua voz não saia.
Ela estava muda, completamente muda. A sombra foi embora para o fundo do mar.Ela nunca mais foi vista. Dela só restou o último e único grito...de sua mãe enlouquecida de remorso e dor.

Karla Bardanza

O Grito...